O Brasil daquele início de século quando nasceu o Campeonato Paulista, em 1902, era um país que não chegara ainda aos 20 milhões de habitantes. Era também uma terra diferente. Enquanto Euclides da Cunha lançava a obra Os Sertões, os socialistas, em manifesto, propunham, entre outras coisas, a extinção do Exército e do dinheiro.
Manaus e Belém esbanjavam o dinheiro da borracha, e a imprensa se horrorizava com dois blocos carnavalescos cariocas que perderam dois foliões depois de uma pancadaria. O horror: os velórios eram animados por bebedeiras e samba.
Charles Miller o introdutor do futebol no Brasil |
O Campeonato Paulista nasceu assim em um ambiente repleto de novidades, entre elas o futebol, que, em São Paulo, colocava suas chuteiras para correr no Velódromo, campo do Paulistano. Naquela competição, aliás, entraram em campo apenas cinco times, todos da Capital. E o Paulistano perdeu a final da primeira edição do Paulista para o São Paulo Atheltic - que não era este São Paulo de agora - e levantou a taça de campeão.
No Velódromo, como o futebol vinha da elegante Inglaterra, não sobrava espaço para histórias como do funeral carioca. E podia ser encontrada uma plaqueta na arquibancada que dizia o seguinte: "É expressamente proibido vaiar".
As quatro mil pessoas que foram ao Velódromo, que ficava na rua Nestor Pestana, tinham que se contentar em bater palminhas para os marmanjos que corriam atrás da bola. Mais britânico impossível. Mas nada estranho para um esporte que exigia desculpas em inglês do jogador que cometesse uma falta.
Charles Miller volta ao Brasil e traz as primeiras bolas |
O torcedor que foi ao Velódromo, para assistir novamente a uma decisão entre São Paulo Athletic e Paulistano, não tinha que se preocupar muito com um possível atropelamento. Ou ele ia a pé ou de bonde, uma palavra arredondada do nome da empresa Bond & Share, que introduziu o carril elétrico de transporte urbano no Brasil.
Se o paulistano não tinha que se preocupar para atravessar uma rua, ele tinha que ficar atento à vestimenta com que saía de casa. Por não atinar a este detalhe, um jogador do São Paulo quase melou a decisão do segundo campeonato paulista. O problema é que o jogador, um inglês que trabalhava em São Paulo, saiu para o Velódromo já devidamente uniformizado.
Sala de troféus do SãoPaulo Athetic |
Quando atravessava a Praça Antônio Prado, um policial estranhou as roupas do homem. O jogador tentou explicar. Em inglês. Foi parar na delegacia, cujo BO o dedou por violar uma regra de conduta básica: era proibido "circular em trajes carnavalescos, fora de época, ofensivos ao pudor por deixarem à mostra as pernas em público, no centro da cidade".
Enquanto isso, no Velódromo, o São Paulo, provavelmente sem reservas, se negava a entrar em campo sem o inglês. Com trinta minutos de atraso no início do jogo, os cartolas resolveram pedir ajuda à polícia para encontrar o jogador. O carnavalesco de pernas de fora foi então liberado para o jogo.
Com o inglês em campo, o time de Charles Miller ganhou de 2 a 1, para desespero do Paulistano, que reclamou com razão da arbitragem de Egídio de Souza Aranha. Além de não ter marcado um pênalti para o Paulistano, o juiz, que devia ter algum compromisso, acabou o jogo sete minutos antes do tempo normal, que na época era de 35 minutos cada etapa.
O São Paulo Athletic voltaria a ganhar o campeonato seguinte, ficando em definitivo com a taça Casemiro da Costa – idealizador da entrega de taças aos campeões. Hoje, em um clássico entre Corinthians e Palmeiras, o torcedor pode ir ao estádio de pernas de fora que o policial não vai achar que é atentado ao pudor. Pode vaiar à vontade, principalmente se o juiz quiser acabar o jogo antes da hora. Mas cuidado com o trânsito de veículos, torcedor. A cidade de São Paulo não tem mais seus seis automóveis do início do século.
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