domingo, 28 de julho de 2013

Chuva e barro: a bola vai rolar



O Astral Futebol Clube era um time estranho. Seus meiões eram pretos. Os calções e as camisas também. Alguém pode imaginar a cor do distintivo? Preto. O Astral, time varzeano de Campinas, era um time estranho. Para tornar as coisas mais sombrias naquele sábado à tarde em que o Estrela Vermelha enfrentaria o Astral, o céu resolveu abrir todas as suas comportas sobre o distrito de Joaquim Egídio, local do jogo.


O campo do Ideal, embora um dos mais competentes da várzea da região, estava sendo incapaz de engolir tamanha quantidade de água. E os dois times, reunidos na área coberta entre os dois vestiários, confabularam durante algum tempo sobre a viabilidade ou não da realização do jogo. Entre jogadores e torcidas, eram 40 pessoas, num espaço de 15 metros quadrados, espiando uma chuva desesperada e 332 poças espalhadas pelo gramado. Depois de muita conversa, veio a decisão: vamos ao jogo.







O aquecimento, por ordem da metereologia, foi rápido. Nem bem havia soado o apito, Peninha, o ponta-esquerda do Astral, desceu como uma lancha envenenada em direção à área do Estrela. E Adilson, o grande beque do Estrela, entrou pra tomar a bola. Somente a bola. Era isso o que ele tenteva explicar ao juiz, que insistia em manter o dedo direcionado para a marca de pênalti. Adilson, com o maior respeito e agarrado à orelha da autoridade da partida, berrava: " Eu fui na bola, ladrão; na bola".


Mas o juiz, recrutado junto à torcida do Astral, não queria saber de conversa. E assoprava seu instrumento de trabalho com um fôlego de sete gatos, tentando fazer frente à ofensiva sonora do lateral do Estrela Vermelha. Os jogadores do Estrela começaram a desconfiar que tinham entrado numa canoa furada.


O próprio Peninha fez questão de cuidar da bola depois que tudo se acalmou. Will, o goleiro, limpou os óculos e ficou a postos. Peninha bateu com precisão do outro lado do goleiro. Mas aí aconteceu o inesperado; quer dizer, mais ou menos inesperado. A bola parou sobre uma poça d'água, que estava em cima da linha do gol. O Astral gritou: "Está dentro". O Estrela gritou: "Está fora". E Will pegou a bola para que o juiz verificasse a marca na poça.






Não que o Will quisesse se desfazer do juiz. Mas assim que ele se abaixou para examinar as marcas deixadas pela bola numa poça barrenta, o goleiro despachou o problema para o campo adversário. E os dois times, já com tremedeiras de bater dentes, trataram de correr atrás da bola.


Quando o juiz, cheio de dúvidas diante da poça d'água, percebeu que o jogo já corria solto na outra área e que ficar ali seria colocar em cheque sua autoridade, resolveu engolir temporariamente o apito e cuidar do que havia se proposto. Cansado, chegou ao outro lado do campo e decidiu novamente fazer funcionar o apito - contrariado, talvez, com a ação interrompida na área oposta e esquecendo-se que estava apitando um pênalti contra o time do qual era torcedor.


O Astral aceitou a marcação mas fez questão de expulsar o juiz traidor de campo. Ding, o ponta-esquerda do Estrela, bateu com perfeição. E a bola, por incrível que pareça, não encontrou nenhuma poça pelo caminho. O novo juiz apitou o gol. Um a zero. E a chuva não mostrava qualquer sinal de desânimo.





O novo juiz tinha tudo para impor respeito no jogo, não tivesse insistido em entrar em campo de tamancos - uma moda nos anos 80 mas pouco indicada para uma partida de futebol debaixo d'água. Agora eram os dois times que estavam desconfiados do acerto da decisão tomada entre os dois vestiários, meia hora antes.


Ter um apito na boca, num jogo de futebol, dá para muitos assopradores a sensação de estar estrela de xerife no peito. Mas o juiz de tamancos, ciente de que não haveria mais ninguém para substituí-lo no campo do Ideal, parecia carregar uma coroa real sobre a cabeça.


Nos dez minutos em que esteve em campo, ele expulsou três jogadores de cada time, marcou mais dois pênaltis e parou infinitas vezes para apanhar os tamancos nas poças.Quando ele marcou o seu terceito pênalti, agora contra o Estrela, que vencia por dois a um, Adilson arrancou-lhe o apito da boca e foi saindo de campo. Por maior que fosse a fome de bola, os dois times perceberam que a história chegara ao fim.


Ninguém iria resistir a mais 45 minutos de chuva e a um apito neurótico. Que viessem as cachaças e as cervejas de Joaquim Egídio. Depois do jogo entre o Estrela e o Astral, o distrito pareceu calmo e belo como nunca, apesar da tempestade. E o juiz de tamancos sumiu do mapa.

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